A Soberania Ideológica em um Mundo Multipolar
Por Alexander Dugin
A Rússia começou a recuperar a sua força e influência após o período de intensa crise dos anos 90, mas essa recuperação da Rússia tem se dado fundamentalmente no âmbito geopolítico. No âmbito ideológico, a Rússia continua seguindo um pragmatismo maquiavélico, esvaziado de princípios superiores. Esse é um defeito que a Rússia deve solucionar o quanto antes. A soberania geopolítica em um mundo multipolar não basta, é necessário adquirir soberania ideológica em relação ao liberalismo ocidental.
No mundo moderno, um modelo multipolar está claramente
tomando forma – quase tomando forma. Ele substituiu a unipolaridade que foi
estabelecida após o colapso do Pacto de Varsóvia e especialmente da URSS. O
mundo unipolar, por sua vez, substituiu o bipolar, no qual o campo soviético se
opunha geopoliticamente e ideologicamente ao Ocidente capitalista. Estas
transições entre os diferentes tipos de ordem mundial não aconteceram da noite para
o dia. Alguns aspectos mudaram, mas outros permaneceram os mesmos por inércia.
Dependendo da mudança em todo o quadro planetário no nível
geopolítico geoestratégico, a natureza ideológica de todos os atores ou polos
globais também foi modificada.
Uma análise mais profunda dessas transformações ideológicas
– passado, presente e futuro – é essencial para o planejamento estratégico.
E embora o governo russo tenha desenvolvido uma tradição
lamentável de resolver problemas apenas à medida que eles surgem e priorizando
apenas respostas a desafios imediatos (como dizem hoje “agir no momento”),
ninguém está livre de mudanças ideológicas globais. Assim como a ignorância da
lei não isenta de responsabilidade, a recusa em compreender os fundamentos da
visão de mundo da ordem global e suas mudanças não alivia de forma alguma as
autoridades – a Rússia como um todo – das profundas leis inerentes à esfera da
ideologia. Qualquer tentativa de substituir a ideologia por puro pragmatismo
pode ter um efeito – e mesmo assim apenas relativo e sempre reversível – apenas
a curto prazo.
Em um mundo bipolar, respectivamente, existiam duas
ideologias globais –
O liberalismo (democracia burguesa) definia a ideia do campo
capitalista, o Ocidente global,
O comunismo era a Ideia de um Oriente socialista
alternativo.
Havia uma ligação inextricável entre os polos geopolíticos –
Oriente-Ocidente e o zoneamento estratégico-militar correspondente do mundo
(Poder Terrestre, Poder Marítimo, Poder Aéreo e, finalmente, o espaço exterior
– Arma Cósmica) e duas ideologias respectivas. Esta conexão influenciou tudo –
invenções técnicas, economia, cultura, educação, ciência, etc. A ideologia
captura não só a consciência, mas também as próprias coisas. A partir de certo
ponto, passou do nível da polêmica sobre questões filosóficas e éticas globais
para a competição da coisas, produtos, gostos, etc. Mas a ideologia, no
entanto, predeterminou tudo – até os menores detalhes.
Olhando para o futuro, deve-se notar que a China nas
condições de um mundo bipolar não era um polo independente. Inicialmente, o
maoísmo fazia parte do campo oriental. E após a morte de Stalin, começou um
resfriamento entre a URSS, juntamente com seus leais satélites e a China, mas
estritamente dentro da estrutura do bloco comunista. A China começou a seguir
uma linha geopolítica independente apenas com Deng Xiaoping, quando Pequim
entrou na era das reformas, e os processos de degradação em larga escala
começaram na URSS. Mas na escala mundial, a China não desempenhou à época nenhum
papel sério – para não mencionar decisivo – (como agora).
Quando o Pacto de Varsóvia foi dissolvido e a URSS entrou em
colapso, um modelo unipolar tomou forma. No nível geopolítico, ele correspondia
ao domínio exclusivo do Ocidente, sua conquista de inegável superioridade e
liderança total sobre todo o resto – incluindo oponentes potenciais
(principalmente sobre os restos do Bloco Oriental representado pela Rússia nos
anos 90 do século XX). Isto se reflete nos documentos estratégicos mais
importantes dos Estados Unidos dos anos 90 – a doutrina militar do “domínio de
espectro total” e a prevenção do surgimento na Eurásia de uma entidade
geopolítica capaz de limitar de alguma forma o controle planetário dos EUA.
Isto foi chamado de “momento unipolar” (C. Krauthammer).
O domínio ideológico do liberalismo em escala mundial
correspondia à unipolaridade geopolítica.
Nos anos 30, o comunista italiano Antonio Gramsci propôs
usar o termo “hegemonia” principalmente como uma expansão mundial da ideologia
capitalista. Após a queda da URSS, tornou-se óbvio que a hegemonia militar,
econômica e tecnológica do Ocidente era acompanhada por outra forma de
hegemonia – ideológica – ou seja, a propagação total do liberalismo. Foi assim
que uma ideologia começou a prevalecer em quase todo o mundo – a ideologia
liberal. Ela foi construída sobre os princípios básicos que a hegemonia
considerava e impunha como normas universais:
individualismo, atomização social,
economia de mercado,
unificação do sistema financeiro mundial,
democracia parlamentar, sistema multipartidário,
sociedade civil,
desenvolvimento tecnológico e, sobretudo, “digitalização”,
globalização,
a transferência de mais e mais poderes dos Estados nacionais
para autoridades supranacionais – como o Fundo Monetário Internacional, o Banco
Mundial, a Organização Mundial da Saúde, a União Europeia, a Corte Europeia de
Direitos Humanos, o Tribunal de Haia e assim por diante.
No mundo unipolar, esta ideologia se tornou não apenas
ocidental, mas a única, pan-humana, universal. A China a aceitou em termos de
economia e globalização dos mercados. A Rússia da era Iéltsin – como um todo
(de alguma forma pervertida).
E mais uma vez, como no mundo bipolar, o campo da ideologia
não se limitou às mais altas esferas da política, ele permeou tudo – educação,
cultura, tecnologia. Os próprios objetos e dispositivos técnicos do mundo
unipolar eram uma espécie de “prova” do triunfo ideológico do liberalismo. Os
próprios conceitos de “modernização” e “progresso” tornaram-se sinônimos de
“liberalização” e “democratização”. E assim, o Ocidente, ao mesmo tempo em que
fortaleceu seu poder ideológico, fortaleceu o controle político e
militar-estratégico direto.
A Rússia de Iéltsin foi uma ilustração clássica desta
unipolaridade:
desamparo e passividade na política internacional,
seguir cegamente os curadores ocidentais na economia,
dessoberanização,
uma tentativa das elites compradoras de se integrarem ao
capitalismo global a qualquer custo.
A Federação Russa foi criada sobre as ruínas da URSS como
parte de um mundo unipolar, jurando fidelidade aos princípios básicos do
liberalismo da Constituição de 1993.
Em condições de unipolaridade, o liberalismo avançou ainda
mais em seu individualismo e tecnocracia. Uma nova etapa começou quando a
política de gênero, a teoria crítica da raça, o feminismo, a preocupação
exagerada com todos os tipos de minoria, veio à tona, bem como no horizonte do
futuro próximo – a transição através da ecologia profunda para o pós-humanismo,
a era dos robôs, ciborgues, mutantes e Inteligência Artificial. As embaixadas
americanas ou bases militares da OTAN em todo o mundo se tornaram as
representações ideológicas do movimento global LGBT+. Os sinais LGBT+ nada mais
são do que uma nova edição do liberalismo avançado.
Mas o “fim da história”, ou seja, o triunfo do liberalismo
global, que os globalistas (por exemplo, Fukuyama) esperavam, não aconteceu.
A hegemonia começou a vacilar. Na Rússia, Putin chegou ao
poder, que com uma mão de ferro tomou um rumo para restaurar a soberania,
ignorando a pressão ideológica de agentes externos e internos de hegemonia (em
princípio, ambas partes de um único todo – a estrutura geral do liberalismo
mundial). A China irrompeu entre as potências mundiais, mantendo o poder
exclusivo do Partido Comunista e protegendo cuidadosamente a sociedade chinesa
contra os aspectos mais destrutivos do globalismo ideológico –
hiper-individualismo, política de gênero, etc.
Assim, o próximo tipo de ordem mundial começou a emergir –
um modelo multipolar.
E aqui a questão da ideologia adquire maior importância,
torna-se decisiva. Hoje, devido à inércia do mundo unipolar (que por sua vez
herda a ideologia de um dos polos do Ocidente capitalista bipolar), o
liberalismo mundial, de uma forma ou de outra, mantém a função de sistema
operacional de pensamento. Até agora, nenhum dos polos emergentes de pleno
direito – ou seja, nem a China nem a Rússia – desafiou o liberalismo como um
todo. Sim, a China rejeita
a democracia parlamentar,
as interpretações ocidentais dos direitos humanos,
a política de gênero, e
o individualismo cultural.
A Rússia, por outro lado,
insiste fortemente, antes de mais nada, na soberania
geopolítica,
coloca o direito nacional sobre o direito internacional, e
cada vez mais começa a caminhar para um conservadorismo
(ainda vago e não articulado).
Ao mesmo tempo, tanto a Rússia quanto a China (especialmente
quando atuam em conjunto) são capazes, na prática, de garantir sua soberania no
nível estratégico e geopolítico. Mas o próximo passo é necessário: avançar
finalmente para a multipolaridade ideológica plena e opor à ideia liberal a
Ideia russa, a Ideia chinesa e, de modo geral, a Ideia multipolar.
Deve-se notar que no confronto ideológico com o Ocidente,
alguns países e movimentos islâmicos foram muito mais longe – principalmente o
Irã, assim como o Paquistão, e até mesmo algumas organizações radicais como o
Talibã (banido na Rússia). A Turquia, o Egito e até mesmo parcialmente os
países do Golfo também estão se movendo agora cada vez mais na direção da
soberania. Isso significa que eles desafiam cada vez mais a hegemonia
ideológica do liberalismo.
Mas até agora nenhum país do mundo islâmico é um polo de
pleno direito. No caso deles, a revolta ideológica contra a hegemonia liberal
está mais adiantada que a revolta geopolítica.
A ideia chinesa não é difícil de ser capturada. Ela é
expressa
primeiro, na versão chinesa do comunismo e no completo
monopólio do PCC sobre o poder (e o PCC é precisamente uma força ideológica),
em segundo lugar, na ideologia confucionista, cuja defesa é
cada vez mais abertamente assumida, especialmente sob Xi Jinping),
em terceiro lugar, está a solidariedade profunda e orgânica
da sociedade chinesa (uma identidade chinesa muito forte e ao mesmo tempo
flexível transforma qualquer chinês, onde quer que ele viva, e cidadão de
qualquer país que ele seja, em um portador natural da identidade, tradição,
civilização e suas estruturas chinesas).
As coisas são muito piores na Rússia. Por inércia dos anos
90, atitudes liberais, valores e diretrizes continuam a prevalecer na sociedade
russa. O mesmo observamos na economia capitalista, na democracia parlamentar,
na estrutura da educação, da informação e da cultura. O objetivo proclamado
abertamente pelo governo russo é a “modernização” e a “digitalização” – às
vezes se acrescenta a “privatização”. Quase todas as avaliações de eficiência e
eficácia, bem como os próprios objetivos de quaisquer transformações, são
copiados diretamente do Ocidente. Há algumas diferenças apenas na questão da
restrição da política de gênero e do ultraindividualismo. O próprio Ocidente
liberal a exagera deliberadamente e a inflaciona. Mas a fim de atacar cada vez
mais a Rússia. A atual guerra fria do Ocidente contra a Rússia é pura guerra
ideológica. Mas no caso da Rússia contemporânea, esta não é a luta do liberalismo
contra o iliberalismo em larga escala, mas do liberalismo puro contra o
“liberalismo” impuro, um “subliberalismo” parcial, fragmentário.
A Federação Russa de hoje é quase perfeita e
autossuficiente, um polo estratégico e político, mas ideologicamente não é um
polo. Não agora.
E é aqui que começam os problemas. Um retorno inercial à
ideologia soviética é impossível. Embora a justiça social e a grandeza imperial
(especialmente na época de Stálin) não sejam apenas soviéticas, mas
historicamente valores e diretrizes russas.
A Rússia precisa de uma nova forma de ideologia iliberal,
uma ideologia civilizacional de pleno direito, que tornará irreversíveis as
realizações de Putin e promoverá a Rússia ao status de um verdadeiro polo de
pleno direito e sujeito soberano na ordem mundial multipolar.
Esta é a tarefa número um para a Rússia.
Estratégia, e não apenas táticas, determina o futuro e a
transferência de poder para a era pós-Putin, e as necessárias reformas de
poder, gestão administrativa, economia, educação, cultura e esfera social, há
muito necessárias. Sem uma ideologia plena nas condições da multipolaridade, não
se pode realizar reformas patrióticas, soberanas. Mas este caminho é
incompatível com o liberalismo em nada – nem nas premissas, nem nos últimos
desafios pós-humanistas e LGBT.
Para que a Rússia exista, não deve mais haver liberalismo na
Rússia.
É aqui que reside a chave do que falamos em publicações
anteriores em Nezygar – a transição para o terceiro polo – ideológico! – do
futuro russo: do liberalismo pró-ocidental dos anos 90 (passado) através dos
compromissos e da esterilidade ideológica (à beira do cinismo) do presente.
Continuaremos este tema nos próximos artigos desta série.
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