Deus, pátria, rei, autogestão e socialismo: Este é o Partido mais antigo da Espanha
Por Hegoi Belategi
Numa altura em que
todos falam de novos partidos, poucos se lembrarão de que o Partido Carlista
representa a ideologia política mais antiga de Espanha.
Estella (Lizarra em Basco) é um município de uns 13.000
habitantes localizado entre Pamplona e Logroño. Esta cidade foi “capital” do
carlismo durante a primeira guerra [carlista] e sede de um conselho de guerra
entre 1936 e 1939. Em Estella também se encontra o Museu do Carlismo; um dos
técnicos do museu Iñaki Urricelqui disse que apesar de atualmente não ser uma
alternativa política, todos os navarros opinam que o carlismo é patrimônio
histórico do país. Mostra disso é que a construção desse museu foi aprovada com
votos de todos os partidos do parlamento navarro, algo impensável em uma
sociedade permanentemente dividida politica e culturalmente: Por um lado
independentistas e nacionalistas bascos de caráter mais progressista, e por
outro lado, conservadores regionalistas e nacionalistas espanhóis.
A versão mais difundida é, que o carlismo surgiu nos anos
1820, como consequência de um conflito dinástico. Quando Fernando VII morreu,
sua filha Isabel II ascendeu ao trono violando assim a lei sálica; lei que
proibia o acesso de mulheres ao trono (lei que, a propósito está em vigor
novamente). Imediatamente milhares de tradicionalistas se opuseram
frontalmente, posicionando-se ao lado de Carlos María Isidro, irmão do Rei, iniciando
assim uma escalada de violência que degeneraria em uma guerra. Todo esse
falatório de professor de História pode parecer distante (além de chato), mas
Urricelqui faz uma análise mais atual do que se passou, mostrando que muitos
dos problemas atuais de Espanha já existiam naquele período, e que além disso
muitos seguem sem solução. O diretor do museu, que enfatiza que é um
historiador e não se considera carlista, opina que a lei sálica foi apenas a
faísca que acendeu o resto dos problemas da Espanha. Foi um problema de base
social e ideológica, que abarcou todos os segmentos da população. Quer dizer,
foi muito mais que católicos contra ateus ou o rural contra o urbano. Já
naquela época se falava das duas Espanhas, a monárquica e a liberal, a católica
e a laica, a Espanha capitalista e a “autogestionada”… Antes se diziam liberais
e tradicionalistas, então foram “vermelhos” e “fascistas”, hoje em dia direita
e esquerda; o pano de fundo é o mesmo. Finalmente, as questões de
territorialidade e identidade foram chave, sendo sobretudo Catalunha e o País
Basco feudos carlistas, diante do imobilismo de Madri para reconhecer seus
foros (direitos históricos de certos territórios para governar-se) e seu
direito a autonomia. Tudo está mais parecido agora, né?
As guerras carlistas terminaram e os primeiros anos do
século XX foram de relativa calma e estabilidade para a Comunión
Tradicionalista (partido político que agrupou os carlistas), gozando de uma
ampla representação institucional nos territórios anteriormente mencionados.
Mas em 1932, se viu qual era a concepção de democracia que tinham os
tradicionalistas. Após perder a prefeitura de Pamplona a mãos dos republicanos,
os requetés (milícias carlistas) causaram incidentes nas ruas. Finalmente em
1936 os carlistas se uniram ao levante fascista do general Mola. Se bem, em um
primeiro momento houve certas dúvidas, mas no momento em que a igreja e o
pretendente carlista Don Javier os ordenaram, os carlistas correram para a
montanha “dando tiros”. Foram chave para ganhar a guerra, sobretudo no norte
onde se lançaram sobre seus próprios vizinhos, guipuzcoanos primeiro e
vizcaínos depois. Cabe destacar os discursos de muitos sacerdotes navarros
animando os jovens, a matar todos os vermelhos, nacionalistas, ateus etc.
Quem diria que eles mesmos seriam as primeiras vitimas do novo regime? Haviam apostado no cavalo ganhador sim, mas quando estavam no podium o cavalo os esmagou com coices. Franco anulou sua ideologia, sua representatividade no poder, os relegou a um papel meramente propagandístico e muitos de seus líderes foram perseguidos.
Foi nesse período quando o carlismo evoluiu para posições
que anos antes haviam combatido. Sob a liderança do pretendente Carlos Hugo – o
qual os carlistas consideravam como seu rei legitimo – o carlismo adotou o
socialismo de autogestão como doutrina. Pode parecer incompreensível, mas bem,
o partido comunista também aceitou uma monarquia não? A longo prazo essa
decisão dividiria e debilitaria o partido para sempre, acima de tudo após os assassinatos
de duas pessoas em sua romaria anual de Montejurra em 1976. Depois de não
poderem lançar candidatos às eleições de 1977, sofreram um forte abalo, e
apesar de terem participado da fundação da Esquerda Unida, foram um partido
extraparlamentar com apoio mínimo. Mesmo assim o P.C. conseguiu sobreviver até
hoje, o que não é tão estranho se se tem em conta o fato de que, muitas das
causas pelas quais o fizeram surgir seguem estando presentes. E que após quase
200 anos não parece que serão solucionadas em breve.
Ramón Muruzabal de 75 anos e seu homônimo Ramón Ábrego de
85, afirmam ser carlistas desde o berço. Os pedimos que nos respondessem a
algumas perguntas, para entender como se sai de um vértice a outra do espectro
político, sem passar antes pelo terreno entediado e moderado que há entre
ambos.
VICE: Vocês que
viveram o carlismo, digamos mais conservador, creem que Franco não chegaria ao
poder sem os carlistas?
Ramón: Em um primeiro momento o plano era apoiar Sanjurjo ou
Mola, mas já se sabe, Franco não os matava, preferiu fazer cair seu avião.
Levando em conta o
que se tornou o franquismo, diria que o carlismo esteve do lado ruim da
história?
É a única guerra que em ganhamos e aquela em que mais
perdemos, é isso. Mas seria errado julgar a partir de um ponto de vista atual.
O rei Xavier e os líderes carlistas convocaram a defender Deus, a pátria, os
foros e o rei; diga-me você que jovem navarro não era católico e foralista em
36.
Em Navarra não houve
frente de batalha, mas mesmo assim houve milhares de mortos e muitos permanecem
enterrados em covas clandestinas. Estiveram os carlistas envolvidos?
Os líderes oficiais jamais o permitiram isso. Mas por outro
lado, houve gente próxima à falange e ao exército que fuzilou em nome do
carlismo. De qualquer forma, também fuzilaram do outro lado.
Vocês se consideram
católicos, monárquicos e também socialistas?
Claro! Cristianismo e comunismo caminham de mão dadas. Jesus
e os primeiros cristãos eram comunistas, viviam em comuna, trabalhavam juntos e
compartilhavam os bens. Por outro lado, Dom Carlos Hugo era um pretendente ao
trono e socialista, então veja se posso ser um monarquista.
§
Em Pamplona nos recebeu Jesús María Aragón, secretario geral do partido. A sede do P.C. se encontra na parte velha da cidade e fica em um piso simples, não muito grande e sem nenhum tipo de luxo a parte de uma bolsa cheia de doces. Antes de começar, Aragón comenta que foram desalojados mediante uma decisão judicial de sua sede em Tolosa (Guipúzcoa).
VICE: Vocês se consideram
um partido de esquerda?
Jesús: Não gostamos muito de nos definir em um eixo
direita-esquerda, mas para que as pessoas entendam diria que sim, somos um
partido de esquerda.
Vocês tem uma
representação institucional em algum município?
Não com nossas siglas, mas sim quando nos lançamos em
coalizão com outros partidos, em Puente la Reina por exemplo. De qualquer
forma, nas últimas eleições foi onde fizemos menos alianças.
Dizem que os
atentados de Montejurra em 1976 foram um golpe moral contra o P.C. do qual não
pôde se recuperar. Acredita-se que a Guardia Civil esteve envolvida.
Houve dois mortos, mas poderiam ser muitos mais, houve uma
multidão de feridos. Foi tudo organizado; a metralhadora que foi utilizada para
o tiroteio foi levada em um caminhão, que foi escoltado pela Guardia Civil. Por
que nós sabemos disso? O caminhão sofreu uma avaria e o mecânico de guarda que
acudiu era membro do P.C. Também, ficou claro que a Guardia Civil tinha uma
ordem de não intervir; já nos parecia estranho haver mais guardas que nunca,
mas que não fizeram nada ao ouvir os disparos. No final agrediram tanto um
sargento que eles tiveram que intervir, mas não acredite que eles tenham
prendido os da metralhadora. Eles simplesmente mandaram uns quantos para um
lado e outros para outro lado. Foi feito parecer que os assassinos eram
seguidores de Sixto, outra facção autodenominada carlista. Mas está claro que o
plano foi elaborado com aprovação do regime. Incluindo o rei Juan Carlos.
Vocês não se
apresentaram para essas eleições, apoiam algum partido?
Partido não. Eu tenho que admitir que quando surgiu o
Podemos, me pareceu uma alternativa. Agora vendo seu programa, já não mais.
Ainda assim penso que é a melhor opção para a Espanha.
E que opinião tem a
respeito da Catalunha?
Nós opinamos que o que sobra é o governo central e o que
importa são as regiões. O que tem que ser feito com urgência é mudar a
constituição. Os catalães tem o direito de votar sobre sua identidade, embora
não descartaria um referendo a nível estatal. Se um filho vai sair de casa a
família tem direito de opinar.
Depois de 20 anos de
governo de Unión del Pueblo Navarro, Geroa Bai governa com apoio de Podemos,
Izquierda-Ezkerra e EH Bildu. Navarra melhorou?
Eu certamente não vi piorar, o que há é muita propaganda
negativa. A câmara de comercio afirma que 70% das empresas abandonaram Navarra
e isso é profundamente falso. É certo que em alguns aspectos houve imposição,
embora acredite que tenha sido bastante interna. Em teoria essa forma de
governo é boa, pois reflete as ideias de amplos setores da população. Mas não
deixam de ser quatro partidos diferentes, certamente mais de um teve que fazer
concessões importantes.
Acredita que um dia o seu partido poderia alçar voo?
Eu não sei, embora eu ache difícil. Durante a transição,
fomos encurralados e fizeram o que podiam para nos desacreditar. Desde então, a
realidade é que decaímos tanto em meios humanos como econômicos. Sem esses
meios é complicado que a mensagem chegue às pessoas. A figura do rei não
convence mais muitos. Posso falar sobre Euskal Herria[País Basco], onde exerci
um mandato e acredito que as pessoas nunca souberam em que posição nos colocar.
Nós, por exemplo, não falamos sobre independência como concebida por outros
partidos, mas buscamos uma independência pessoal para que todos vivam livres de
acordo com suas próprias ideias.
Fonte: https://www.vice.com/es/article/pp9a3g/entrevista-partido-carlista-espana-020
Comentários
Postar um comentário