Esteban Hernandéz - Entrevista com Diego Fusaro: Idiotas de Esquerda Combatem um Fascismo Inexistente e Aceitam o Mercado
Por Esteban Hernandéz e Diego Fusaro
(2019)
Diego Fusaro é um dos intelectuais mais polêmicos da Itália, uma vez que ocupa uma posição ideológica que aglutina posições conservadoras e de esquerda. É marxista e suas referências são Gramsci, Pasolini e Costanzo Preve, ao mesmo tempo que é antiglobalista e soberanista, e isso o levou a sustentar posições com as quais muitos salvinistas não estão em desacordo. Vários livros seus foram editados na Espanha, tanto por editoras ligadas à esquerda, como ‘Antonio Gramsci, la pasión de estar en el mundo’ (Ed. Siglo XXI) ou ‘Todavía Marx’ (Ed. El Viejo Topo), ou à direita, como o recém publicado ‘El contragolpe’ (Ed. Fides). O pensamento de Fusaro é um tanto heterodoxo, que está destinado a receber críticas de um lado e de outro, e em não poucas ocasiões foi tachado de vermelho e de fascista, como também se fez com quem o entrevistou, que acusam de branqueamento. Mas aqui assumimos com gosto este risco, porque as ideias do filósofo na moda na política italiana também merecem ser conhecidas.
Você acaba de publicar ‘La notte del mondo’. Explique-me,
por favor, por que estamos em uma noite escura, e em que ponto se cruzam Marx e
Heidegger.
Meu livro ‘La notte del mondo. Marx, Heidegger e il
tecnocapitalismo’ (UTET, 2019) é uma tentativa de raciocinar segundo as
categorias de Marx e Heidegger sobre o que o próprio Heidegger, com os versos
de Hölderlin, define “A noite do mundo”. A noite do mundo é uma época na qual a
escuridão está tão presente que já não vemos mais sequer a escuridão em si e,
portanto, não somos conscientes desta escuridão. Heidegger o expressa dizendo
que “é a noite da fuga dos deuses”, na qual já nem sequer somos conscientes da
pobreza e da miséria nas quais nos encontramos. Esta é uma situação de máxima
emergência. Por sua vez, Marx nos ‘Grundrisse’ dizia que “o mundo moderno deixa
insatisfeito, ou, se satisfaz em algo, é de modo trivial”. É outra maneira de
dizer que estamos efetivamente na noite do mundo, onde sequer vemos o enorme
problema em que nos encontramos. No livro eu emprego as categorias de dois autores
muito diferentes, como Marx e Heidegger, para tratar de expressar quais são as
contradições de nosso presente em que todo o mundo calcula e ninguém pensa. No
qual a razão econômica e técnica, técnico-científica, se impôs como a única
razão válida e pretende substituir todas as demais.
Você insiste que o eixo político não deve ser esquerda e
direita, mas os de cima e os de baixo. E que ideologicamente devemos ser
conservadores nos valores (enraizamento, lealdade, família, eticidade, pátria)
e de esquerda [na economia] (emancipação, socialismo democrático, dignidade do
trabalho). Essa é a forma de ser marxista hoje?
Sim, creio que a geografia da política atual mudou
profundamente. Hoje há uma espécie de totalitarismo liberal que nos permite ser
liberais de direita, liberais de esquerda, liberais de centro, sempre e quando
formos liberais, sempre, portanto, esquerda e direita se convertem em duas
formas diferentes de ser liberais ou, precisamente, em liberalismo político e
econômico, em prática libertária nos costumes e, claro, em atlantista na esfera
geopolítica. Creio que hoje devemos repensar uma recategorização da realidade
política de acordo com a dicotomia alto/baixo ou a categoria elite/povo, que às
vezes se utiliza como sinônimo. Isso implica que se a elite, o senhor
globalista, é precisamente cosmopolita, a favor da abertura ilimitada da livre
circulação, o servo, pelo contrário, deve lutar pela soberania nacional-popular
como base da democracia dos direitos sociais. Hoje é necessário restabelecer o
vínculo entre o Estado nacional e a revolução socialista. Este é o ponto
fundamental.
Qual vai ser o futuro da UE? Romper-se-á? Quais opções se
abririam? Acredita ser possível uma aliança dos países do norte, como Alemanha,
Países Baixos, Suécia e outros e outra [aliança] dos países do sul? Como
recompor-se-á a ordem internacional se a UE se tornar ainda mais fraca ou se
vier a se romper?
Devemos ser muito claros ao dar uma definição da União
Europeia. A União Europeia é a união das classes dominantes europeias contra as
classes trabalhadoras e os povos da Europa. É a vitória pós-1989 de um
capitalismo que se realiza completamente, dissolvendo os últimos bastiões de
resistência: os Estados soberanos nacionais com o primado do político e da
democracia sobre o automatismo total do tecnocapitalismo. Esta é a União
Europeia. Um processo de globalização, de despolitização da economia e da
imposição do interesse do capital cosmopolita contra os interesses das
comunidades nacionais. Por isso, a luta contra o capitalismo em nosso
continente hoje não pode deixar de ser uma luta contra a União Europeia. A
tragédia é que a esquerda abandonou esta luta, na medida em que passou do
internacionalismo proletário ao cosmopolitismo liberal e, portanto, deixa a
luta contra a União Europeia, contra a globalização capitalista, para as forças
que, muito frequentemente, não querem a emancipação humana nem a solidariedade
dos trabalhadores, tratam simplesmente de reagir, olhando para um passado que
já não existe.
Como deveriam atuar os países da Europa diante dos EUA e
da China?
Creio que a Europa pode se salvar apenas se recuperar, por
um lado, suas próprias identidades culturais e sua pluralidade estrutural e,
por outro lado, se se libertar da ditadura chamada União Europeia, que é a ditadura
do capital, dos mercados contra os trabalhadores e os povos, e se se libertar
do jugo mortal do atlantismo de Washington. Temos que apontar para um eixo
eurasiático que vá desde a Rússia de Putin até a China em função
antiatlantista. Devemos nos libertar disso e mudar nosso ponto de vista.
Você insiste que se deve combater o globalismo, mas
tampouco deve-se apoiar o nacionalismo. Qual é a opção?
Creio que hoje devemos ir mais além do globalismo e do
nacionalismo. Afinal de contas, o globalismo não é mais que o nacionalismo
estadunidense que se tornou mundo e, portanto, é uma forma de nacionalismo
levado a seu máximo desenvolvimento. Creio que é necessário fazer valer, contra
estes dois opostos, um modelo de internacionalismo entre Estados soberanos solidários,
baseados na democracia, no socialismo e nos direitos das classes mais frágeis
e, em consequências, em uma espécie de soberanismo internacionalista,
democrática e socialista, distanciada tanto do cosmopolitismo que destrói as
nações, quanto do nacionalismo que é um egoísmo pensado a nível da própria
nação individual.
O Estado é o primado do político sobre o econômico. Por
isso o mundo global quer acabar com os Estados?
Os Estados nacionais soberanos, na modernidade, não apenas foram os lugares do imperialismo, do nacionalismo e das guerras, como repete a ordem do discurso dominante, que quer destruir os Estados para impor o primado do capital globalista, onde os Estados se converteriam unicamente nos mordomos do capital. Esta é a visão liberal do Estado. Na verdade, os Estados nacionais soberanos também foram lugares das democracias e das conquistas salariais das classes fracas. E por essa razão que hoje o capital quer destruí-los, certamente não para evitar as guerras ou o imperialismo que, de fato, prosperam mais que nunca no marco pós-nacional. Hoje o Estado pode representar o único vetor de uma revolução opositora contra o capital mundialista, tal como demonstram perfeitamente os acontecimentos dos países bolivarianos, como Bolívia, Venezuela ou Equador que, apesar de seus limites estruturais, estão criando formas de populismo soberanista, socialista, patriótico, anti-globalista e identitário [identitário: de identidade étnica].
Por ideias como estas você foi chamado de fascista. Suas
posturas políticas assustam mais a esquerda que a direita. Por quê? Nessa
demonização, que papel desempenham os meios de comunicação e a Academia?
Claro, hoje em dia a categoria de ‘fascismo’ é usada de
maneira completamente a-histórica e descontextualizada, para demonizar
simplesmente ao interlocutor. Hoje quem reafirma a necessidade de controlar
politicamente a economia e, portanto, reintroduzir a soberania contra a
abertura cosmopolita, é vilipendiado e tachado imediatamente de ‘fascista’,
‘vermelho-marrom’ e ‘estalinista’. A categoria de fascismo está, pois,
completamente a-historizada, apenas serve para ocultar o verdadeiro rosto do
que Pasolini já havia identificado como o verdadeiro fascismo de hoje: o da
sociedade de mercado, o totalitarismo dos mercados e das bolsas de valores
especulativas. Este é o verdadeiro rosto do poder hoje em dia, e muitos tontos
que se intitulam de ‘esquerda’ lutam contra o fascismo, que já não existe, para
aceitar completamente o totalitarismo do mercado. Estes últimos são os que lutam
na França contra Le Pen para aceitar de bom grado Macron. Lutam contra um
fascismo que já não existe para poder aceitar o novo golpe invisível da
economia de mercado. E, claro, a classe intelectual, o circo midiático e o
clero intelectual desempenham um papel fundamental neste processo; a tarefa da
classe intelectual, acadêmica e periodista é garantir que os dominados aceitem
o domínio da classe dominante ao invés de se rebelar. De modo que, como na
caverna de Platão, amem suas próprias correntes e lutem contra qualquer
libertador.
Você insistiu que com uma mão nos dão direitos civis e
com a outra nos cortam direitos sociais. Nisto consistem as chamadas políticas
da diversidade?
Os chamados ‘direitos civis’ [LGBT, feminismo e afins] são
hoje em dia, na verdade, nem mais nem menos que os direitos do ‘burguês’, que
Marx havia descrito em ‘A questão judaica’. Em outras palavras, são os direitos
do consumidor, como diríamos hoje, os direitos do indivíduo que quer todos os
direitos individuais que ele pode comprar concretamente. Estou pensando nos
ventres de aluguel, por exemplo, na custódia das crianças segundo a lógica de
custo do consumidor. Pois bem, hoje estamos assistindo a um processo mediante o
qual o capital nos corta os direitos sociais, que são direitos vinculados ao
trabalho, à vida comunitária da pólis; anula estes direitos e, em troca,
aumenta os direitos do consumidor, sempre vinculados a um consumo que se leva a
cabo de maneira individual, sem questionar nunca a ordem da produção e o fato
de que, realmente, terminam fortalecendo o sistema capitalista ao invés de
debilitá-lo.
Além disso, criam uma espécie de micro conflitualidade generalizada que atua como uma arma de distração massiva e, também poderíamos dizer, como uma arma de divisão massiva permanente. Por um lado, distrai da contradição capitalista que já nem sequer se menciona, e, por outro lado, por assim dizer, divide as massas em homossexuais e heterossexuais, muçulmanos e cristãos, veganos e carnívoros, fascistas e antifascistas, etc. E enquanto isso ocorre de maneira natural, o capital deixa que as pessoas saiam às ruas pelo orgulho gay, pelos animais e por tudo, mas que não se atrevam a fechar as ruas para lutar contra a escravidão dos salários, contra a precariedade ou contra a economia capitalista? De ser assim, aí está a repressão, como aconteceu na França com os Coletes Amarelos.
Você salienta que os laços estáveis, representados no
matrimônio, se converteram hoje em revolucionários. Por quê? Como mudaram as
coisas para que algo radicalmente frequente na História se converta hoje em
revolucionário? Em que consiste o consumismo erótico?
O capitalismo atual é flexível e precarizador. Desagrega
toda a comunidade humana e quer ver em todas as partes o indivíduo sem
identidade e sem vínculos, o consumidor que trava relações descartáveis
baseadas no consumo. Por isso, o capitalismo hoje declarou a guerra ao que eu,
em meu livro ‘Storia e coscienza del precariato. Servi e signori della
globalizzazione’ (Bompiani, 2018) chamo de raízes éticas em sentido hegeliano;
quer dizer, aquelas formas comunitárias de solidariedade que vão desde a
família até os organismos públicos como os sindicatos, a escola, a
universidade, até culminar no Estado. Tem como objetivo rompê-los para reduzir
o mundo a um mercado único, como disse Alain de Benoist: a sociedade se
converte em um único mercado global. Esta é a razão pela qual hoje em dia a
reestilização da sociedade, quer dizer, a revalorização das raízes éticas em
sentido hegeliano é um gesto revolucionário.
Você afirma que se deve recuperar Gramsci e distanciá-lo das
esquerdas liberal-libertárias que hoje dominam e que são quem mais o utilizaram
ultimamente e que encarnam exatamente o que Gramsci combateu. Definiria também,
por ir ao caso espanhol, a Pablo Iglesias, ou Íñigo Errejón, e ao Podemos em
geral, como um fenômeno cultural de glorificação do capitalismo globalizado?
Sim, no essencial, Gramsci é todo o oposto do que está
fazendo a esquerda na Itália e em grande parte da Europa, as esquerdas já não
são vermelhas, mas cor-de-rosa, já não são a foice e o martelo, mas o
arco-íris. Lutam pelo capital e não pelo trabalho, lutam pelo cosmopolitismo
liberal e não pelo internacionalismo das classes trabalhadoras. O caso
específico de Podemos em Espanha me parece bastante interessante, porque
começou como força soberanista e socialista, para além da direita e da
esquerda, mas me parece que ultimamente está entrando cada vez mais na frente
única do partido único do capital, e é realmente uma lástima porque o partido
podemos originalmente parecia ser um partido de ruptura.
Que papel deve desempenhar o intelectual neste cenário?
Na minha opinião, o intelectual de hoje deve restabelecer o que Gramsci chamava de ‘conexão sentimental com o povo Nação’, quer dizer, deve voltar a conectar o povo à política, à intelectualidade mesma, para que o povo saia da passividade e se transforme em subjetividade ativa, como já está acontecendo, na medida em que o povo está se rebelando contra a elite cosmopolita. Isso ele faz votando por Brexit, votando por Trump, votando na Itália contra o referendo constitucional, na Grécia pelo referendo contra a austeridade da União Europeia. Mas o povo, disse Gramsci, deve ser ‘interpretado’, necessita de uma filologia viva, o povo é um texto que deve ser interpretado e não dirigido de maneira unívoca. Deve-se escutar suas necessidades, suas exigências, o que a esquerda hoje não está fazendo; a esquerda é demofóbica, quer dizer, odeia o povo, odeia o povo porque o povo lhe escapa das mãos, já não se sente representado por uma esquerda amiga do capital e dos senhores, ao invés dos trabalhadores e do povo.
Você propõe recuperar a utilização do italiano frente ao
inglês, e além disso de um italiano bem falado ou escrito. Entende isso como
uma batalha cultural imprescindível. Por quê?
Sim, eu proponho, contra a novilíngua dos mercados que falam
o inglês do ‘spread’, do ‘spending review’, da ‘austerity’ e da ‘governance’,
uma veterolíngua baseada na recuperação do italiano com toda sua riqueza, o
italiano de Dante e de Maquiavel. É uma batalha cultural de resistência à
globalização e a este ‘genocídio cultural’, como chamava Pasolini, que a
globalização está levando a cabo ao destruir as culturas em nome do único
modelo permitido: o consumidor de mercadorias, apátrida, pós-identitário, que
fala o inglês anônimo dos mercados financeiros apátridas.
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