Vida e Obra de Yukio Mishima
Por Kerry Bolton
Yukio Mishima, 1925-1970, nasceu Kimitake Hiraoka em uma
família de classe média-alta. Autor de uma centena de livros, dramaturgo, e
ator, ele foi descrito como o "Leonardo da Vinci do Japão
contemporâneo", e é um dos poucos escritores japoneses a se tornar
conhecido e a ser traduzido no Ocidente.
O Lado Negro do Sol
Desde a Segunda Guerra Mundial, o Ocidente esqueceu o que
Jung teria chamado de a alma "sombria" do Japão, os impulsos
coletivos que foram reprimidos pela "Lei de Ocupação" e pela
imposição da democracia. Os japoneses são vistos estereotipicamente como sendo
extremamente educados e sorridentes empresários ou turistas ávidos por
fotografar. A ênfase tem sido na contraparte suave da psiquê japonesa, no
"crisântemo" (as artes), e na repressão da "espada" (a
tradição marcial).
A antropóloga cultural americana Ruth Benedict escreveu
sobre a dualidade do caráter japonês usando este simbolismo em seu estudo, O
Crisântemo e a Espada, ao qual Mishima se referiu em aprovação. Benedict havia
sido comissionada pelo governo americano em 1944 para escrever um estudo da
cultura japonesa. Retratar os japoneses como selvagens era suficiente para o
propósito da propaganda de guerra, mas uma compreensão mais plena de nuances
era considerada necessária para as negociações do pós-guerra.
O que Benedict descreveu foi o ethos de provavelmente toda
sociedade Tradicional, independentemente de tempo, espaço e etnia. Essa
"tradição perene" foi descrita por Julius Evola, que mostrou que as
culturas tradicionais possuem perspectivas análogas. Elas percebem o terreno
como um reflexo do cosmos, o mortal como um reflexo do divino. Eles consideram
o Rei ou Imperador como um elo entre a terra e o cosmos, o humano e o divino.
Este foi o ethos tradicionalista que Yeats desejava reviver na Civilização
Ocidental, por exemplo, em uma maneira similar à demanda de Mishima pela
ressurreição da ética samurai no Japão. Em tais sociedades tradicionais, o Rei
também é um sacerdote que serve como o elo direto ao Divino, o guerreiro é
honrado ao invés do comerciante, e a sociedade é estritamente hierárquica e
considerada como um reflexo terreno da ordem divina. Realizar o seu dever
divino como rei, soldado, sacerdote, camponês, ou comerciante é o propósito de
cada vida individual, e é sancionado pela lei e pela religião.
Daí, nas sociedades tradicionais, o papel do comerciante é
subordinado, e o domínio do dinheiro - plutocracia - como no Ocidente hoje, é
considerado como uma inversão do ethos tradicional, um sintoma de decadência
cultural. No Japão tradicional, como Inazo Nitobe explica:
"De todas as grandes ocupações na vida, nenhuma estava mais removida da profissão de armas que o comércio. O comerciante estava situado o mais baixo na categoria de vocações - o cavaleiros, o agricultor, o mecânico, o comerciante. O samurai derivava sua renda da terra e poderia até se se dar ao luxo, se fosse de seu interesse, à prática de agricultura amadora; mas o contador e o ábaco eram abomináveis".
Nitobe afirma que quando o Japão se abriu para o comércio
internacional, o feudalismo foi abolido, os feudos dos samurais foram tomados,
e ele foi compensado com notas promissórias, com o direito de investir no
comércio. Daí o samurai foi degradado ao status de um comerciante de modo a
sobreviver.
Segundo Benedict, durante a guerra, os japoneses se
consideravam como a única nação no mundo que havia mantido a ordem divina. Eles
acreditavam ser seu dever reimpor esta ordem sobre o resto do mundo.
O Bushido japonês, o "Caminho do Samurai", é,
portanto, análogo ao de outras sociedades tradicionalistas, tal como a cavalaria
da Europa Medieval e o código guerreiro explicado por Krishna a Arjuna no
Bhagavad Gita. Para a aristocracia guerreira japonesa a espada (katana) era um
objeto sagrado, forjado com cerimônia, seu uso sujeito a regras precisas.
Mishima insistia que o Japão retornasse a um equilíbrio das
artes e do espírito marcial. Usando a terminologia de Jung, Mishima estava
chamando o Japão à "individuação" pela permissão de que o arquétipo
"sombra" reprimido, "A Espada", se reafirmasse. Mishima era
ele mesmo uma síntese de estudioso e guerreiro que rejeitava o intelectualismo
e a teoria puras em favor da ação.
Nitobe, explicando o Bushido, escreveu que o intelectualismo
era desprezado pelo samurai. Aprender era valorado não como um exercício
intelectual, mas como uma questão de formação de caráter. O intelecto era
considerado subordinado ao ethos. O homem e o universo eram ambos espirituais e
éticos. O cosmos possuía um imperativo moral. Isso foi discutido por Mishima em
seu comentário do Hagakure.
A ocupação americana foi tamanha inversão do espírito
japonês que Ian Buruma, escrevendo no "Prefácio" à edição de 2005 de
O Crisântemo e a Espada, afirma:
"Jovens japoneses hoje podem ter alguma dificuldade em
reconhecer alguns aspectos do 'caráter nacional' descrito no livro de Benedict.
Lealdade ao Imperador, dever para com os pais, terror em não pagar dívidas
morais, tudo isso decaiu em uma era de auto absorção tecnologicamente
impulsionada".
O Caminho do Samurai
O ideal estético de Mishima era a beleza de uma morte
violenta no auge de uma vida, um ideal comum na literatura japonesa clássica.
Como um jovem doente, o ideal de Mishima da morte heroica já havia tomado
posse: "Um desejo sensual por tais coisas como o destino de soldados, a
natureza trágica de sua vocação...os modos pelos quais eles morreriam".
Ele estava determinado a superar suas fraquezas físicas. Há
muito do "Homem Superior" de Nietzsche nele, na superação de
limitações pessoais e sociais para expressar sua própria individualidade
heroica. Seu lema era: "Seja Forte".
A Segunda Guerra Mundial teve uma influência formativa em Mishima. Junto com seus colegas estudantes, ele sentia que a conscrição e a morte certa aguardavam. Ele se tornou presidente do clube literário do colégio, e seus poemas patrióticos foram publicados na revista estudantil. Ele também cofundou seu próprio jornal e começou a ler os clássicos japoneses, se tornando associado ao grupo literário nacionalista Bungei Bu, que acreditava que a guerra era sagrada.
Porém, Mishima passou por pouco no exame médico para
treinamento militar. Ele foi conscrito para uma fábrica de aviões na qual
aviões kamikaze eram manufaturados.
Em 1944, ele teve seu primeiro livro, Hanazakan no Mori (A
Floresta em Florescência) publicado, um feito considerável no último ano da
guerra, o que lhe trouxe reconhecimento instantâneo.
Enquanto o papel de Mishima no esforço de guerra não fosse
obviamente o que ele teria desejado, ele passou o resto de sua vida no mundo do
pós-guerra tentando realizar seus ideais de Tradição e ética samurai, buscando
retornar o Japão ao que ele considerava como seu verdadeiro caráter em meio à
era democrática na qual o ideal de "paz" é um absoluto inquestionável
(ainda que ele tenha que ser continuamente imposto com muitos gastos militares
e guerras localizadas).
A Vontade de Saúde
Em 1952, Mishima, então uma figura literária estabelecida,
viajou aos EUA. Sentado sob o sul à bordo do navio, algo que ele havia sido
incapaz de fazer em sua juventude por causa de seus frágeis pulmões, Mishima
resolveu equiparar o desenvolvimento de seu físico com o de seu intelecto.
Seu interesse nos clássicos helênicos o levou à Grécia. Ele
escreveu que, Na Grécia, porém, houve um equilíbrio entre o corpo físico
e a inteligência, soma e Sophia...). Ele descobriu uma "Vontade de
Saúde", uma adaptação da "Vontade de Poder" de Nietzsche, e ele
se tornou quase tão conhecido como fisiculturista quanto como escritor.
Ataque Literário
Em 1966, Mishima escreveu: "O objetivo de minha vida
era adquirir todos os vários atributos do guerreiro". Seu ethos era o do
Bunburyodo-ryodo samurai: o caminho da literatura (Bun) e da espada (Bu), que
ele buscava cultivar em igual medida, uma mistura de "arte e ação".
"Mas o desejo de meu coração pela Morte e Noite e Sangue não seria
negado". Sua pouca saúde na juventude lhe havia roubado do que ele via
claramente como seu verdadeiro destino: ter morrido durante a Guerra a serviço
do Imperador, como tantos outros jovens japoneses. Ele expressava o ethos
samurai: "Manter a morte em mente dia após dia, para manter em foco a cada
momento a morte inevitável...a bela morte que outrora me havia escapado também
havia se tornado possível. Eu estava começando a sonhar com minhas capacidades
como guerreiro".
Em 1966, Mishima pediu permissão para treinar em quarteis do exército, e no ano seguinte ele escreveu Cavalos em Fuga, cujo enredo envolve Isao, um estudante direitista radical e praticamente de artes marciais, que comete hara-kiri após esfaquear um empresário. Isao havia sido inspirado pelo livro Shinpuren Shiwa ("A História do Shinpuren") que reconta o Incidente Shinpuren de 1877, a última resistência dos samurais quando, armados apenas com lanças e espadas, eles atacaram um quartel do exército em desafio aos decretos governamentais proibindo o porte de espadas em público e ordenando o corte dos cabelos dos samurais. Todos, a não ser um, samurais cometeram hara-kiri. Novamente Mishima estava usando a literatura para planejar como ele visualizou sua própria vida se desabrochando e terminando, contra o pano-de-fundo da tradição e da história.
Em 1960 Mishima escreveu o conto Patriotismo, em honra da
rebelião Ni ni Roku de 1936 de oficiais do exército da facção Kodo-ha que
desejavam atacar a União Soviética em oposição aos rivais Tosei-ha que
objetivavam atacar a Grã-Bretanha e outras potências coloniais.
A rebelião de 1936 se imprimiu em Mishima, como o desafio
suicida, mas simbólico do último samurai no Incidente Shinpuren de 1877. Em
Patriotismo o herói, um jovem oficial, comete hara-kiri, sobre o que Mishima
afirma: "Seria difícil imaginar uma visão mais heroica do que o tenente
nesse momento".
Mishima novamente escreveu sobre o incidente em sua peça
Toka no Kiku. Aqui ele critica o Imperador por trair os oficiais Kodo-ha e por
renunciar a sua divindade após a guerra, o que Mishima via como uma traição dos
mortos da guerra. Mishima combinou estas três obras sobre a rebelião em um
único volume chamado a trilogia Ni ni Roku.
Mishima comenta sobre a trilogia e a rebelião:
"Certamente algum Deus morreu quando o Incidente Ni ni
Roku falou. Eu tinha apenas onze anos na época o senti pouco. Mas quando a
guerra terminou, quando eu tinha vinte, uma época bastante sensível, eu senti
algo da terrível crueldade da morte daquele Deus...a figura positiva era minha
impressão infantil do heroísmo dos oficiais rebeldes. Sua pureza, coragem,
juventude e morte os qualificavam como heróis míticos; e suas derrotas e mortes
os tornaram verdadeiros heróis nesse mundo..."
É a frequente expressão do sentimento de Mishima de que a
"derrota e morte", tal como findaram as rebeliões de 1877 e 1936,
tornava os rebeldes tradicionalistas "verdadeiros heróis nesse
mundo", que indica uma metafísica atuante subjacente a sua perspectiva e
especialmente suas ações, em relação não ao resultado de uma ação quanto ao
significado, mas à pureza da ação per se. Isso está para além da política, que
objetiva alcançar resultados, ou "a arte do possível", e entra no que
o hindu chamaria de dharma.
No início de 1966, Mishima sistematizou seus pensamentos em
um ensaio de 80 páginas intitulado Eirei no Koe novamente baseado na rebelião
Ni ni Roku. Nessa obra ele pergunta, "por que o Imperador teve que se
tornar um ser humano?" Enquanto a obra permaneceu obscura, ela lhe
forneceu a base para a fundação de sua Sociedade do Escudo vários anos depois.
Em uma entrevista com uma revista japonesa naquele ano,
Mishima sustentou o sistema imperial como o único tipo adequado para o Japão.
Toda a confusão moral da era pós-guerra, ele afirma, deriva da renúncia do
Imperador a seu status divino. O afastamento do feudalismo em direção ao
capitalismo e a consequente industrialização perturba as relações entre
indivíduos. O amor real entre um casal requer um terceiro termo, o ápice de um
triângulo incorporado na divindade do Imperador.
O Tatenokai
No ano seguinte Mishima criou sua própria milícia, o Tatenokai (Sociedade do Escudo) escrevendo pouco antes em reviver a "alma do samurai dentro de mim". Permissão foi dada pelo exército para que Mishima usasse seus campos de treinamento para os seguidores estudantes que ele recrutou de diversas sociedades universitárias direitistas.
No escritório de um jornal estudantil direitista, uma dúzia de
jovens se reuniu. Mishima escreveu em um pedaço de papel: "Nós, por meio
desta, juramos ser a fundação do Kokoku Nippon". Ele fez um corte no dedo,
e todos os outros repetiram o ato, deixando o sangue preencher uma taça. Cada
um assinou o papel com seu sangue e bebeu da taça. O Tatenokai nasceu.
Os princípios da sociedade eram:
- O Comunismo é incompatível com a tradição, cultura e
história japonesas e é contrário ao sistema imperial;
- O Imperador é o único símbolo de nossa comunidade
histórica e cultural e de nossa identidade racial; e
- O uso de violência é justificável em vistas da ameaça
representada pelo comunismo.
A milícia foi designada para não ter mais do que 100
membros, e para ser um exército de reserva concentrado apenas no treinamento,
sem qualquer agitação política. A base metafísica do pensamento de Mishima para
a milícia era expressada por sua descrição do Tatenokai como o "exército
menos armado e mais espiritual do mundo". Eles estavam seguindo o caminho
da tradição, que havia sustentado os japoneses durante a Segunda Guerra Mundial
sobrepujando forças materiais, como descrito por Ruth Benedict. Mishima se
referiu ao livro de Benedict ao explicar que sua razão para criar o Tatenokai
era restaurar ao Japão o equilíbrio do "crisântemo e da espada" que
havia sido perdido após a guerra.
O emblema que Mishima designou para a sociedade era composto
por dois elmos japoneses antigos em vermelho contra um fundo branco de seda.
À essa época, Mishima sentiu que sua vocação como escritor
estava preenchida. Deve ter parecido a hora certa para morrer. Ele havia
recebido o Prêmio Literário Shinchosha em 1954 por O Som das Ondas e o Prêmio
Literário Yomiuri em 1957 por O Templo do Pavilhão Dourado. Seus romances Neve
Primaveril e Cavalos em Fuga haviam vendido bem, mas ele estava enfurecendo os
literatos, entre os quais seu único defensor nessa época era Yasunari Kawabata,
que havia recebido o Prêmio Nobel de Literatura em 1968, Mishima tendo perdido
porque o comitê do Prêmio Nobel assumiu que ele podia esperar mais um pouco em
favor de seu mentor. Kawabata considerava o talento literário de Mishima como
excepcional.
Mishima caracterizava a intelligentsia como:
"O inimigo mais forte dentro da nação. É assombroso
quão pouco o caráter dos intelectuais modernos no Japão mudou, ou seja, sua
covardia, escárnio, 'objetividade', desenraizamento, desonestidade, seus falsos
gestos de resistência, sua auto importância, inatividade, loquacidade e
prontidão para comer as próprias palavras".
O Hagakure
O destino de Mishima foi moldado pelo código samurai exposto
em um livro que ele havia mantido consigo desde a guerra. Este era o Hagakure,
cuja linha mais conhecida era: "Eu descobri que o caminho do samurai é a
morte".
O Hagakure era a obra do samurai do século XVII Jocho Yamamoto,
que ditou seus ensinamentos a seu estudante Tashiro. O Hagakure se torno o
código ensinado ao samurai, mas não se tornou disponível para o público geral
até a segunda metade do século XIX. Durante a Segunda Guerra Mundial ele foi
amplamente lido, e seu slogan sobre o caminho da morte foi usado para inspirar
os pilotos kamikaze. Após a Ocupação ele passou ao submundo, e muitas cópias
foram distribuídas para que não caíssem em mãos americanas.
Mishima escreveu seu próprio comentário sobre o Hagakure em
1967. Ele afirmou em sua introdução que era o livro ao qual ele se referia
continuamente nos 20 anos desde a guerra e que durante a guerra ele o havia
sempre mantido consigo.
Mishima relata que imediatamente após a guerra, ele se
sentiu isolado do resto da sociedade literária, que havia aceitado ideias que
eram estranhas a ele. Ele se perguntou qual seria seu princípio orientador
agora que o Japão havia sido derrotado. O Hagakure era a resposta, lhe
fornecendo "constante orientação espiritual" e "a base de minha
moralidade". Como todos os outros livros japoneses do período da guerra, o
Hagakure havia se tornado odioso na era democrática, a ser expurgado da
memória, mas nas trevas dos tempos ele agora irradia sua "verdadeira
luz", nas palavras de Mishima:
"Foi agora que o que eu havia reconhecido durante a
guerra no Hagakure começou a manifestar seu verdadeiro significado. Aqui estava
um livro que pregava liberdade, que ensinava paixão. Aqueles que leram com
cuidado apenas a mais famosa linha do Hagakure ainda mantém uma imagem dele
como um livro de fanatismo odioso. Naquela única linha, 'eu descobri que o
Caminho do Samurai é a morte', pode ser visto o paradoxo que simboliza o livro
como um todo. Foi essa frase, porém, que me deu forças para viver".
A Feminização da Sociedade
Um dos temas de interesse primário para o leitor
contemporâneo do comentário de Mishima sobre o Hagakure é o uso de Mishima das
observações de Jocho sobre sua própria época para analisar a era moderna. Tanto
o Japão do século XVII como o Japão do século XX manifestam sintomas análogos
de decadência, este último devido à imposição de valores alienígenas que são
produtos do ciclo ocidental de decadência, enquanto os da época de Jocho
indicam que a civilização japonesa em seu tempo estava em uma fase de
decadência. Portanto, aqueles interessados em morfologia cultural, a de
Spengler em particular, verão análogos ao declínio atual da civilização
ocidental na análise de Jocho de seu tempo e na análise de Mishima do Japão do
pós-guerra.
O primeiro sintoma considerado por Mishima é a obsessão da
juventude com a moda. Jocho observou que mesmo entre os samurais, os jovens
falavam apenas em dinheiro, roupas e sexo, uma obsessão que Mishima também
observou em sua época.
Mishima também apontou que a feminização pós-guerra do homem
japonês foi notada por Jocho durante os anos de paz da era Tokugawa. Impressões
setecentistas de casais dificilmente distinguem entre homem e mulher, com
cortes de cabelo, roupas e expressões faciais similares, tornando impossível
dizer quem é o homem e quem é a mulher. Jocho registra no Hagakure que durante
esta época, a taxa de pulsação de homens e mulheres, que normalmente diferem,
havia se igualado, e isso era notado ao se tratar de problemas médicos. Ele
chamava a isso de "o pulso feminino". Jocho observou: "O mundo
está de fato adentrando em uma fase degenerada; os homens estão perdendo sua
virilidade e estão se tornando exatamente como mulheres..."
Celebridades substituem Heróis
Jocho condena a idealização de certos indivíduos alcançando
o que hoje chamaríamos de status de celebridade. Mishima comenta:
"Hoje, jogadores de baseball e estrelas de televisão
são idolatrados. Aqueles que se especializam em habilidades que fascinarão uma
audiência tendem a abandonar sua existência como personalidades humanas
completas e a se reduzirem a um tipo de marionete habilidosa. Essa tendência
reflete os ideais de nossos tempos. Nesse ponto não há diferença entre artistas
e técnicos."
O presente é a era da tecnocracia (sob a liderança de técnicos);
diferentemente expressa, é a era dos artistas de performance... Eles esquecem
os ideais de um ser humano total; degenerar em uma simples engrenagem, uma
única função se torna sua maior ambição...
O espetáculo de Hollywood e tudo que as palavras
"estrela" e "celebridade" sugerem epitomizam a banalidade
cultural do mundo hoje.
O Tédio do Pacifismo
Sob o pacifismo e a democracia, o indivíduo está
literalmente morrendo de tédio, ao invés de viver e morrer heroicamente.
"Nossa é uma época na qual tudo é baseado na premissa
de que é melhor viver o máximo possível. A expectativa de vida se tornou a mais
longa na história, e um plano monótono para a humanidade se desdobra diante de
nós".
Uma vez que um homem jovem encontre seu lugar na sociedade,
sua luta acabou, e não há nada mais para a juventude além da aposentadoria,
"e a vida pacífica e tediosa da velhice impotente". O conforte do
estado de bem-estar garante contra a necessidade de luta, e se é simplesmente
ordenado a "descansar". Mishima comenta sobre o número extraordinário
de idosos que cometem suicídio. Agora nós podemos acrescentar o número ainda
mais extraordinário de jovens que cometem suicídio.
Mishima equipara socialismo e estado de bem-estar social, e
descobre que ao fim do primeiro, lá está a "fadiga do tédio" enquanto
ao fim do segundo está a supressão da liberdade. O povo deseja algo pelo que
morrer, ao invés da paz infinita que é sustentada como Utopia. A luta é da
essência da vida. Para o samurai, a morte é o foco de sua vida, mesmo em tempos
de paz. "A premissa da era democrática é que é melhor viver o máximo
possível".
A Repressão da Morte
O mundo moderno busca evitar o pensamento da morte. Porém a
repressão de um elemento tão vital da vida, como todas essas repressões, levará
a uma tensão explosiva cada vez maior. Mishima afirma:
"Nós estamos ignorando o fato de que levar a morte ao
nível da consciência é um elemento importante de saúde mental... o Hagakure
insiste que ponderar sobre a morte diariamente é se concentrar diariamente na vida.
Quando fazemos nosso trabalho pensando que podemos morrer hoje, nós não podemos
deixar de sentir que nosso trabalho subitamente se torna radiante com vida e
significado".
Extremismo
Mishima afirma que o Hagakure é uma "filosofia de
extremismo". Daí, ela está inerentemente descompassada com o caráter de
uma sociedade democrática. Jocho afirmou que enquanto a Razão Áurea é bastante
valorada, para o samurai sua vida diária deve ser de uma natureza heróica,
vigorosa, para superar e ultrapassar. Mishima comenta que "ir ao excesso é
um importante trampolim espiritual".
Intelectualismo
Mishima tinha o mesmo desprezo por intelectuais que os
ocidentais que também estavam em revolta contra o mundo moderno, como D.H.
Lawrence, que acreditava que a força vital é reprimida pelo racionalismo e
intelectualismo e substituída pela mentalidade contabilista do comerciante, não
apenas nos negócios, mas em todos os aspectos da vida. Jocho afirmou que:
"O homem calculista é um covarde. Eu digo isso porque
os cálculos tem relação com lucro e perda, e tal pessoa é, portanto, preocupada
com lucro e perda. Morrer é uma perda, viver é um lucro, e assim se decide não
morrer. Portanto se é um covarde. Similarmente um homem de educação camufla com
seu intelecto e eloquência a covardia ou ganância que é sua verdadeira
natureza. Muitas pessoas não percebem isso".
Mishima comenta que na época de Jocho não havia nada que
correspondesse à intelligentsia moderna. Porém, havia estudiosos, e mesmo os
próprios samurais haviam começado a se transformar em uma classe similar
"em uma época de paz estendida". Mishima identifica esse
intelectualismo com "humanismo", como fez Spengler. Este
intelectualismo significa, contrariamente à ética samurai, que "não se
oferece corajosamente em face do perigo".
Sem Palavras de Fraqueza
O samurai em tempos de paz ainda fala com um espírito
marcial. Jocho ensinou que, "a primeira coisa que um samurai diz em
qualquer ocasião é extremamente importante. Ele demonstra com essa única
observação todo o valor do samurai". Jocho afirmou: "Mesmo em
conversa casual, um samurai jamais deve reclamar. Ele deve constantemente estar
em guarda para não deixar escapar uma única palavra de fraqueza".
"Não se deve perder o coração no infortúnio".
O Fluxo do Tempo
A referência de Jocho ao "fluxo do tempo" indica
que ele reconheceu a natureza cíclica da vida de um organismo cultural 400 anos
antes de Spengler tê-la explicado ao Ocidente. Mishima aponta que enquanto
Jocho lamenta "a decadência de sua era e a degeneração do jovem
samurai", ele observa "o fluxo do tempo", realisticamente
afirmando que é inútil resistir ao fluxo. Como Jocho afirmou: "O clima de
uma era é inalterável. Que as condições estão piorando constantemente é prova
de que entramos na última fase da Lei".
Jocho emprega a analogia de estações tanto quanto Spengler
fez ao descrever os ciclos de uma civilização: "Porém, a estação não pode
sempre ser primavera ou verão, nem podemos ter luz do dia para sempre. O que é
importante é fazer de cada era tão boa quando ela possa ser segundo sua
natureza". Jocho não recomenda nem nostalgia pelo retorno do passado, nem
a atitude "superficial" dos que valorizam apenas o que é moderno, ou
"progressivo" como falamos hoje.
Um Destino de Samurai
"O Japão similarmente deposita suas esperanças de
vitória em uma base diferente da prevalente nos Estados Unidos. Ela venceria,
ela clama, uma vitória do espírito sobre a matéria. A América era grande, seus
armamentos eram superiores, mas que importava? Tudo isso, eles diziam, havia
sido previsto e descontado...
Mesmo quando ela estava vencendo, seus estadistas civis, seu
Alto Comando, e seus soldados, repetiam que essa não era uma disputa entre
armamentos; era um enfrentamento de nossa fé nas coisas contra sua fé no
espírito".
25 de novembro de 1970 foi escolhido como o dia que Mishima
cumpriria seu destino como samurai, depositando sua fé no espírito contra a era
moderna. Quatro outros do Tatenokai se uniram a ele. Todos portavam faixas com
um slogan do Hagakure. O objetivo era fazer de refém o General Mishita para
permitir que Mishima se dirigisse aos soldados estacionados na base Ichigaya em
Tóquio. Mishima e seu tenente, Morita, então cometeriam hara-kiri. Apenas
adagas e espadas seriam usadas no ataque, em consonância com a tradição
samurai.
O general foi amarrado e amordaçado. Um duro confronto se
seguiu conforme oficiais diversas vezes entravam no escritório do general.
Mishima e seu pequeno bando a cada vez forçavam os oficiais a recuarem.
Finalmente, eles foram expulsos com golpes da espada de Mishima contra seus
traseiros. Mil soldados se reuniram no térreo. Dois dos homens de Mishima
lançaram panfletos da sacada acima, convocando para uma rebelião para
"restaurar Nippon".
Precisamente ao meio dia, Mishima apareceu na sacada para se
dirigir à multidão. Gritando por sobre o barulho de helicópteros ele declarou:
"O povo japonês hoje pensa em dinheiro, apenas em
dinheiro: Onde está nosso espírito nacional hoje? O Jieitai deve ser a alma do
Japão".
Os soldados zombavam. Mishima continuou:
"A nação não possui fundação espiritual. É por isso que
vocês não concordam comigo. Vocês serão apenas mercenários americanos. Aí estão
vocês em seu minúsculo mundo. Vocês não fazem nada pelo Japão". Suas
últimas palavras foram: "Eu saúdo o Imperador. Vida longa ao
Imperador!"
Morita se uniu a ele na sacada em saudação. Ambos retornaram ao escritório de Mishita. Mishima se ajoelhou, gritando uma última saudação, e enfiou a adaga em seu estômago, forçando-o em direção horária. Morita falhou na decapitação deixando-a para que outro a terminasse. Morita então recebeu a adaga de Mishima, mas pediu ao espadachim que havia finalizado Mishima para que fizesse seu trabalho, e a cabeça de Morita foi cortada com um único golpe. Os seguidores remanescentes reuniram as cabeças de Mishima e Morita e rezaram sobre eles.
Dez mil pranteadores foram ao funeral Mishima, o maior de
seu tipo já realizado no Japão. "Eu quero fazer de minha vida um
poema", Mishima havia escrito aos 24 anos de idade. Ele havia cumprido seu
destino segundo o caminho do samurai: "Escolher o lugar em que se vai
morrer é também a maior alegria da vida". Mishima escreveu em seu
comentário sobre o Hagakure: "A forma positiva de suicídio chamada de
hara-kiri não é um sinal de derrota, como no Ocidente, mas a expressão máxima
da vontade livre, de modo a se proteger a própria honra".
Após sua morte, seu comentário sobre o Hagakure se tornou um
best seller imediato.
Notas:
[1] Henry
Scott Stokes, A vida e a morte de Yukio Mishima (Harmondsworth: Penguin Books,
1985), p. 15.
[2] Stokes,
p. 18.
[3] Ruth
Benedict, "O crisântemo e a espada", 1946, (New York: Mariner Books,
2005).
[4] Stokes, p. 18.
[5] Evola afirma isso: "Toda civilização tradicional é
caracterizada pela presença de seres que, em virtude de sua superioridade inata
ou adquirida sobre a condição humana, incorporam na ordem temporal a presença
viva e eficaz de um poder que vem de cima. Assim, o Pontífice Romano por
exemplo, que significa “construtor de pontes”, está entre o natural e o
sobrenatural". - Julius Evola, Revolta Contra o Mundo Moderno (Vermont:
Inner Traditions International, 1995), p. 7.
[6] Inazo Nitobe, Bushido:O Código do Samurai, 1899
(Sweetwater Press, USA, 2006), p. 104.
[7] Nitobe,
p. 105.
[8] Evola,
p. 84.
[9] Nitobe,
p. 59.
[10] Ian Buruma, “Prefácio”, "O crisântemo e a
espada", p. XII.
[11] Mishima, Confissões de uma máscara (Londres: Peter
Owen, 1960), p. 14.
[12] Mishima era “bem versado em Nietzsche” (Stokes, p.
152).
[13]
Stokes, p. 72.
[14]
Stokes, p. 80.
[15]
Stokes, p. 81.
[16]
Stokes, p. 89.
[17]
Stokes, p. 89.
[18]
Stokes, p. 119.
[19] Stokes, p. 152.
[20] Mishima, Sol e Aço (Londres: Kodansha International,
1970), p. 49.
[21] Durante a Segunda Guerra Mundial.
[22] Mishima, Sol e Aço, p. 59.
[23] Mishima, “Patriotismo,” Morte no solstício de verão e
outras histórias (New Directions, 1966), p. 115.
[24] Stokes comenta que Mishima “foi um brilhante
dramaturgo, talvez o melhor dramaturgo da era do pós-guerra no Japão. Seu
diálogo foi soberbo e a estrutura de suas peças é excelente”. (p. 170).
[25] Mishima, citado por Stokes, p. 200.
[26] Mishima, As vozes dos mortos heroicos, 1966.
[27] Stokes, p. 200.
[28] Domingo Mainichi, 8 de março de 1966.
[29] “Japão
Imperial.”
[30]
Stokes, p. 203.
[31]
Stokes, p. 205.
[32] Queen Magazine, Inglaterra, janeiro de 1970.
[33] Benedict, p. 21. Ver abaixo.
[34] Comentários de Stokes, p. 227.
[35] Kathryn Sparling, “Nota do Tradutor”, Yukio Mishima em
Hagakure: A Ética Samurai e o Japão Moderno, 1967 (New York: Basic Books, 1977),
p. VIII.
[36] Yukio Mishima em Hagakure: A Ética Samurai e o Japão
Moderno, 1967 (Nova Iorque: Basic Books, 1977).
[37]
Mishima on Hagakure, p. 4.
[38]
Mishima on Hagakure, pp. 5–6.
[39]
Mishima on Hagakure, p. 6.
[40]
Mishima on Hagakure, p. 17. Jocho, Hagakure, Book One.
[41]
Mishima on Hagakure, pp. 18–19. Jocho, Hagakure, Book One.
[42]
Mishima on Hagakure, pp. 20–21.
[43]
Mishima on Hagakure, p. 24.
[44]
Mishima on Hagakure, pp. 24–25.
[45]
Mishima on Hagakure, p. 27.
[46]
Mishima on Hagakure, p. 29.
[47]
Mishima on Hagakure, p. 61.
[48]
Mishima on Hagakure, p. 67. Jocho (Book One).
[49]
Mishima on Hagakure, p. 69.
[50]
Mishima on Hagakure, p. 74. Jocho (Book One).
[51] Oswald Spengler, O Declínio do Ocidente (Londres,
George Allen e Unwin, 1971).
[52] Mishima on Hagakure, p. 82.
[53] Isto se refere à entrada de três estágios
progressivamente degenerados de acordo com os ciclos budistas da história.
Mishima em Hagakure, p. 95, nota 11.
[54] Mishima e o Hagakure, p. 83.
[55]
Benedict, p. 21.
[56] Stokes,
pp. 29–51.
[57]
Exército.
[58] Stokes, p. 241.
[59] Mishima em Hagakure, p. 46.
[60] Kathryn Sparling, “Nota do Tradutor,” Yukio Mishima em Hagakure, p. VII.
Originalmente publicado em 16 de outubro de 2017.
Fonte: https://3droga.pl/kultura/kerry-bolton-yukio-mishima/
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